"É a vida, mais que a morte, a que não tem limites."

terça-feira, 30 de março de 2010

PERTENCIMENTOS

Ontem eu a ouvi rezar:
"Papai do céu, protege minha mamãe que anda um pouco triste..."

Em seguida, pensando que eu dormia, repetiu em mim os mesmos carinhos que faço nela. Nesse acalanto, adormeci. Pensando no abraço que um dia me fez sentir em casa.

segunda-feira, 22 de março de 2010

TROPEÇO

Era uma tarefa de matemática, a ser feita "com a ajuda de um adulto":
"Um passarinho voava livremente pelo céu, quando tropeçou e caiu. Isso é possível?"

Ela disse que não. Que quem voa, ou nada, não tropeça. "Essa foi fácil, pensei". Mas não foi. Ela não quis escrever isso no dever de casa. Queria, porque queria, contar uma história sobre como o passarinho livre tropeçou na nuvem. E caiu. Eu não deixei, e depois de muita conversa, a convenci a optar pela primeira resposta.

Porém, ela tem razão. É assim a vida. Foge às regras, desafia a lógica e às vezes nos faz tropeçar quando voamos livres.

Mas tem nada, não, filha! Você é uma literata, e sem saber, entendeu Machado de Assis:

"É melhor cair das nuvens do que do terceiro andar."

terça-feira, 16 de março de 2010

SEM SALTO ALTO

Eu não gosto de salto alto. Ainda bem que minha altura permite que os evite sempre que possível. Gosto de caminhar, e caminho rápido, portanto descarto aquilo que atrapalha ou impede meu prosseguir. Também escolho mostrar-me como sou, sem ilusões de grandeza. Gosto dos meus pés perto do chão. 

Talvez eu esteja me ajustando ao meu verdadeiro tamanho. Conhecendo meus limites, aceitando que alguns muros são intransponíveis. Bobagem insistir em caminhar sozinha por estradas áridas, quando há outros caminhos que nos acenam com companhia.

Já fui diferente. Gostava de mais artifícios, de mais enfeites. Acho que no tempo em que tinha mais ilusões. Agora busco a verdade, em mim e nos outros. E deixo as alturas para os pensamentos, que podem elevar-se sem precisar de apoio.

Somos grandes quando crianças. Quando crescemos é que ficamos pequenos.

terça-feira, 9 de março de 2010

MERCÚRIO


Meu avô era dentista e às vezes nos deixava brincar com bolinhas de mercúrio, colocadas dentro de um vidro. Claro que não fazíamos a menor idéia do quanto aquele lindo metal líquido era perigoso e confesso que às vezes desobedecia a regra de não tocar. Como um daqueles joguinhos de achar a saída do labirinto, o mercúrio insistia em sempre fugir para onde eu não queria. Dividia-se e se juntava de novo, aleatoriamente. Ou ao menos, assim me parecia.

Agora eu cresci e não brinco mais com mercúrio. Mas meus sentimentos andam a brincar comigo como essas bolinhas brilhantes, lindas e fluidas. Fogem de mim, reaparecem, sem que eu possa tocá-los, retê-los ou comandar-lhes a direção. Belos, perigosos e por vezes intoxicantes. Como a órbita excêntrica do planeta com o mesmo nome, oscilam entre extremos. Contudo, da mesma forma que o metal é usado na fabricação de espelhos, conhecer esses lugares escuros me permite enxergar-me melhor. E a partir desse conhecimento, vou passar a refletir a luz, e não, a escuridão.


quinta-feira, 4 de março de 2010

O ESPAÇO DO AMOR

Ela dormia a noite toda, em seu berço. Eu buscava desculpas para vê-la dormir. Há bebês que choram, acordam à noite. Ela dormia. Dava-me um sossego que eu não entendia... E quem acordava às madrugadas era eu, para ter certeza que ela estava bem. E resistia à vontade de pegá-la. Foi sempre só na hora da primeira mamada que ela foi para a nossa cama, já de manhãzinha.

Poucas vezes, ela ficava febril. Nessas noites, havia hora marcada para remédio, termômetros. E tenho lembranças ternas de levá-la para a sala, ajustá-la exatamente na curva do cotovelo que é feita para o abraço e dormirmos as duas, ali. A mãe é o melhor berço do filho. Tão juntas ficávamos, corações tão próximos, que éramos uma só novamente.

Eu apaguei as lembranças daquele apartamento, até porque veio tão pouco dele comigo. Coisas são efêmeras e a mim interessa que me pertençam só os afetos. Mas dessas noites no sofá, só nós duas, iluminadas pela luz filtrada pelas cortinas, sinto falta. Elas me ensinaram que mesmo nos menores espaços cabem os maiores sentimentos.

segunda-feira, 1 de março de 2010

LIBERDADE

Quando ela nasceu, achei que nunca mais eu ia ficar sozinha. Que ela era minha. Não é, claro. Cada um é só de si. Ainda bem que descobri a tempo. 
Agora, ensino a ela a liberdade. E fico alegre quando a vejo tão feliz me dando tchau e indo sozinha para suas aventuras.
Este final de semana, ela foi. E quando voltou, perguntei:

- Sentiu saudades?
- Não deu tempo, mamãe, estava tão bom!

É bom vê-la forte, segura de ser amada, sabedora que estarei sempre aqui, esperando por ela. Mas é melhor ainda quando ela me pede:

- Mamãe, me dá banho e troca minha roupa? Eu sei fazer sozinha, mas estou carente...
(Carente, para ela, é quem gosta de carinho.)

Amar é isso: cuidar e libertar. Esperando pela volta. Porque quando se ama e é amado, há sempre um recomeço.

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