"É a vida, mais que a morte, a que não tem limites."

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

CONTOS DE FADAS


Meus pais foram liberais dos anos 70 e queriam dar a mim e a minha irmã a liberdade de escolhermos nossa religião quando crescêssemos, de forma que não nos batizaram. Isso desencadeou uma "conspiração" familiar, que levou meus avós paternos a nos batizarem "às escondidas" e escolherem eles mesmos nossos padrinhos.


Coube-me como padrinho meu avô. Figura masculina mais importante da minha infância, ele sempre foi tanto que o status de padrinho nada lhe acrescentou. Minha madrinha era quieta, uma dessas tias solteironas e beatas. O único brinquedo que me recordo de ganhar dela foi uma lanterninha verde, que aliás, nunca funcionou. No entanto, ela me deu aulas de catecismo, me ensinou algumas orações e, principalmente, sempre mandava rezar uma missa em minha intenção nos meus aniversários e Natal. Ela faleceu faz alguns anos e desconfio que essas missas e suas orações me fazem muita falta...

Minha irmã teve como padrinhos um casal de parentes, ele irmão da minha avó, creio. O tio faleceu logo, mas a tia era figura encantadora. Naquele tempo, crianças podiam andar na rua sozinhas e sem dizer aonde iam, e desde os meus 8 anos, eu ia muitas vezes à casa dela. Sobradinho pequeno, dois andares de cômodos enfeitados, quarto com sacada.... Parecia uma casinha de bonecas, e eu ficava horas, em paz, brincando com um caixinha de botões e bijuterias.  Essa tia querida era dessas poucas pessoas que encontramos durante a vida na companhia de quem nos sentimos confortáveis no silêncio.

Em uma de minhas última visitas a ela, cheguei como sempre de surpresa, sem avisar. Havia com ela um rapaz bem novo, sobre a mesa um bolo e champagne, e ela, muito feliz, me disse:

- que bom que você veio, será a única convidada do nosso casamento.

Comi o bolo, brinquei, conversamos, me despedi com naturalidade, e ainda hoje fico feliz por saber que minha reação deva tê-la deixado feliz. Claro que quando cheguei na casa dos meus avós com a "novidade" do casamento, fui informada que não deveria mais ir lá por motivos morais que não me recordo, já que não devo ter prestado atenção na hora. Meus pais não endossaram a proibição, e fui ainda à casa dela, agora deles, mais algumas ocasiões, até que ela se mudou de cidade devido à pressão e preconceito. Tive poucas notícias dela, até sua morte, mas soube que foi feliz.

Essa madrinha da minha irmã deu a ela em um aniversário um livro que me pareceu, então, o mais lindo do mundo: A Sereiazinha, de Hans Christian Andersen. Meus contos de fadas preferidos são de Andersen: além desse, A Rainha da Neve e Os Cisnes Selvagens. E ainda uma menção honrosa para A Pequena Vendedora de Fósforos e O Rouxinol.

O conto de Andersen nada tem a  ver com o desenho da Disney, muito bonitinho, mas sem a profundidade do original. Coloquei a história, com alguma adaptação, no post abaixo. Acho que é um tanto triste pelos padrões atuais, e sempre achei que foi-lhe exigido demasiado sacrifício. Mas encantei-me desde sempre com a pequena sereia que sente-se deslocada no mundo que conhece, enfrenta o perigo e a dor em busca do que almeja e ama desejando que o outro seja feliz.


A SEREIAZINHA

Hans Christian Andersen

BEM no fundo do mar a água é azul como as folhas das centáureas, pura como o cristal mais transparente, mas tão transparente, mas tão profunda que seria inútil jogar ali a âncora e, para medi-la, seria preciso colocar uma quantidade enorme de torres de igreja umas sobre as outras a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície.
Lá é a morada do povo do mar. No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar, Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e sua velha mãe dirigia a casa. Era uma mulher espiritual, mas tão orgulhosa de sua linhagem, que usava doze ostras na cauda, enquanto que as outras grandes personagens não usavam senão seis.
Ela merecia elogios, pelos cuidados que tinha para com as suas netas bem-amadas, todas princesas encantadoras. No entanto, a mais moça era ainda mais linda do que as outras; sua pele era suave e transparente como uma folha de rosa, seus olhos eram azuis como um lago profundo seus longos cabelos louros como o trigo; todavia, não possuía pés: assim como suas irmãs, seu corpo terminava por uma cauda de peixe.
Cada uma das princesas tinha seu terreno no jardim, o qual ela cultivava a seu belo prazer. Uma lhe dava a forma de uma baleia, a outra, a de uma sereia; mas a menor fez o seu em forma de sol e plantou nele flores rubras como ele. Era uma jovem estranha, silenciosa e pensativa. Seu maior prazer era ouvir as estórias sobre o mundo em que viviam os homens. Todos os dias pedia à avó que lhe falasse dos objetos, das cidades, dos homens e dos animais.
Quando você completar quinze anos, disse a avó, eu lhe darei permissão para subir à superfície do mar e de sentar-se ao luar sobre os rochedos, para ver os grandes navios passarem e para tomar conhecimento das florestas e das cidades. Você verá um mundo todo novo.
No ano seguinte a primeira das jovens completaria quinze anos, e, como não havia senão um ano de diferença entre cada uma delas, a mais moça teria que esperar ainda cinco anos para subir à superfície do mar.
Chegou finalmente o dia em que a princesa mais velha completou quinze anos; então ela subiu à superfí- cie do mar, a fim de descobrir o mundo; o desconhecido.
Ao voltar, estava cheia de coisas para contar. Oh! como sua irmãzinha ouvia atentamente!
No ano seguinte, a segunda obteve a permissão para subir. Muito contente, ela emergiu a cabeça no momento em que o céu tocava o horizonte e a magnificência desse espetáculo levou-a ao auge da alegria.
Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais imprudente, e assim, subiu pela embocadura do rio e foi seguindo o seu curso. Avistou admiráveis colinas plantadas de vinhedos e árvores frutíferas, castelos e fazendas situados no meio de florestas soberbas e imensas.
A quarta irmã, que era menos afoita, gostou mais de ficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdia ao longe e onde o céu se arredondava em volta da água, como um grande sino de vidro. 
E o dia da quinta irmã chegou; estavam exatamente no inverno: e assim ela viu o que as outras não puderam ver. 0 mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e por todo lado navegavam, com formas estranhas e brilhantes como diamantes, montanhas de gelo. 
Ela se sentou sobre uma das maiores e todos os navegadores fugiam daquele lugar, onde ela abandonava seus cabelos ao sabor do vento. À noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens. 0 terror espalhou-se por todos os lados; mas ela, tranq üilamente sentada sobre a sua montanha de gelo, viu a tempestade cair em ziguezague sobre a água revolta.
E chegou o dia em que a sereiazinha também completou quinze anos.
Adeus!, disse ela; e, ligeira com uma bola de sabão, atravessou a água.
Assim que sua cabeça apareceu na superfície da água, o sol acabava de se deitar; mas as nuvens brilhavam ainda, como rosas de ouro e a estrela vespertina iluminava o meio do céu. Perto da sereiazinha estava um navio de três mastros; não levava mais do que uma vela, por causa da calmaria e os marujos estavam sentados nas vergas é no cordame. A música e as canções ressoavam sem cessar e, a aproximação da noite, tudo ficou iluminado por cem lanternas penduradas por toda a parte: podia-se acreditar estar vendo as bandeiras de todas as nações. 
A sereiazinha nadou até a janela do grande aposento, e, de cada vez que se alçava, percebia através dos vidros transparentes uma quantidade de homens magnificamente trajados. 0 mais belo deles era um jovem príncipe muito elegante, de longos cabelos negros, com a idade ao redor dos dezesseis anos e era para celebrar sua festa que todos aqueles preparativos estavam sendo realizados.
Já era muito tarde, mas a sereiazinha não se cansava de admirar o navio e o belo príncipe. As lanternas não brilhavam mais e os tiros de canhão já haviam cessado; todas as velas tinham sido içadas e o veleiro se afastava a grande velocidade. A princesa o seguiu, sem desviar os olhos das janelas. Mas logo a seguir o mar começou a agitar-se; as ondas aumentaram e grandes nuvens negras se agrupavam no céu. À distância brilhavam os relâmpagos e uma terrível tempestade se preparava. 0 veleiro se balançava sobre a água do mar impetuoso, numa marcha rápida. 
A sereiazinha continuou com a sua viagem acidentada; divertia-se bastante. Mas assim que o veleiro, sofrendo as conseqüências da tempestade, começou a estalar e a adernar, ela compreendeu o perigo e teve que tomar cuidado para não ferir-se nos pedaços de madeira que vinham até ela.
A agitação tomara conta do pessoal do navio; mais uma sacudidela! ouviu-se um grande barulho e o bar co partiu-se ao meio; e a  sereiazinha viu o príncipe mergulhar no mar profundo. Louca de alegria, ela imaginou que ele fosse visitar a sua morada; mas depois lembrou-se de que os homens não podem viver dentro da água e que, em conseq üência, ele chegaria morto ao castelo de seu pai.
Então, para salvá-lo, ela atravessou a nado a distância que a separava do príncipe, passando pelos destro ços do navio, arriscando-se a se machucar, mergulhou profundamente nas águas por várias vezes e assim pôde chegar até o jovem príncipe, justamente no instante em que suas forças começavam a abandoná-lo e quando ele já fechava os olhos, a ponto de estar para morrer.
A sereiazinha levou para o alto das águas, sustentou sua cabeça fora delas, depois abandonou-se com ele ao capricho das ondas.
Na manhã seguinte o bom tempo voltou, mas já quase nada restava do veleiro. Um sol vermelho, de raios penetrantes, parecia chamar à vida o jovem príncipe; mas seu olhos continuavam cerrados. A sereiazinha depositou um beijo em sua fronte e ergueu seus cabelos molhados e rezou pela sua saúde. Passou em frente à terra firme, coberta por altas montanhas azuis, no alto das quais brilhava a neve branca. Perto da costa, no meio de uma soberba floresta verde, havia uma cidade com uma igreja e um convento. Não longe dali o mar formava um pequeno golfo, entrando por um rochedo coberto de fina areia branca. Foi ali que a sereia colocou o príncipe com cuidado, tomando cautela para que ele ficasse com a cabeça alta e pudesse receber os raios do sol. 
Daí a pouco os sinos da igreja começaram a tocar e uma quantidade enorme de moças apareceu nos jardins. A sereiazinha afastou-se nadando e escondeuse atrás de umas grandes pedras para observar o que acontecia ao jovem príncipe. Logo depois, uma das moças passou por ele; no início pareceu assustar-se, mas logo a seguir, foi buscar outras pessoas, que começaram a tratar do príncipe.
A sereia viu-o recobrar os sentidos e sorrir a todos aqueles que tratavam dele; só não sorriu para ela, pois não sabia que o havia salvo. E assim, logo que o viu ser conduzido para uma grande mansão, ela mergulhou tristemente e voltou para o castelo de seu pai.
A sereiazinha sempre fora silenciosa e pensativa; a partir desse dia, ficou muito mais ainda. Suas irmãs perguntaram-lhe o que ela vira lá em cima, mas ela não quis contar nada. Mais de uma vez, à noite e pela manhã, ela voltou ao lugar onde deixara o príncipe. Viu as flores morrerem, os frutos do jardim amadurecerem, viu a neve desaparecer das altas montanhas, mas jamais viu o príncipe; e voltou cada vez mais triste para o fundo do mar.
Lá, seu único consolo era sentar-se em seu pequeno jardim e abraçar a linda estatueta de mármore que se parecia tanto com o príncipe, enquanto que suas flores negligenciadas e esquecidas, cresciam pelas alheias como umas selvagens, entrelaçavam seus longos galhos nos ramos das árvores, formando uma pequena floresta que obscurecia tudo.
Finalmente essa existência tornou-se insuportável; e ela contou tudo a uma de suas irmãs, que o contou às outras, as quais repetiram a estória a algumas amigas íntimas. E acontece que uma destas, que também vira a festa do navio, conhecia o príncipe e sabia onde estava situado o seu reino.
Desde então, a sereiazinha começou a ir a esse lugar, tanto durante o dia, como à noite; aproximava-se da costa, ousava mesmo sentar-se sob a grande varanda de mármore que projetava uma sombra em seus olhos; muitas vezes, ao som da música, o príncipe passava por ela em seu barco florido, mas ao ver seu véu branco em meio aos arbustos verdes, pensava tratar-se de um cisne ao abrir suas asas.
Sua afeição pelos homens crescia dia a dia e cada vez mais ela desejava se elevar até eles. Suas irmãs não podiam satisfazer toda a sua curiosidade, então ela perguntou à sua velha avo, que conhecia muito o mundo mais elevado, o que muito justamente era chamado de país à beira-mar.
Os homens vivem eternamente?, pergunta a jovem princesa. Eles não morrem assim como nós?
- Sem dúvida, - respondia a velha, eles morrem e sua existência é mesmo mais curta do que a nossa. Nós outros vivemos algumas vezes trezentos anos; depois, ao morrermos, nós nos transformamos em espuma, pois no fundo do mar não existem túmulos para receberem os corpos inanimados. Nossa alma não é imortal; depois da morte está tudo acabado. Nós somos com as rosas verdes: uma vez cortadas, não florescem mais! Os homens, pelo contr ário, possuem uma alma que vive eternamente, que vive mesmo depois que seus corpos viram cinzas; essa alma voa até o céu e vai até as estrelas que brilham e mesmo que nós possamos sair da água e ir até o pais dos homens, não podemos ir a certos lugares maravilhosos e imensos, que são inacessíveis ao povo do mar.
- E por que não possuímos a mesma alma imortal? - pergunta a sereiazinha muito aflita - eu daria de boa vontade as centenas de anos que ainda tenho que viver para ser homem, nem que fosse por um dia e partir depois para o mundo celeste.
Não serei mais do que uma espuminha; para mim, não mais o murmúrio das vagas, nada de flores nem de sol! Não há nenhum meio de conquistar uma alma imortal?
- Somente um, mas é quase impossível. Seria preciso que um homem concebesse por você um amor infinito, que você lhe fosse mais cara do que seu pai ou sua mãe. Então, agarrado a você com toda a sua alma e o seu coração, ele unisse sua mão à de você com o testemunho de um padre, jurando fidelidade eterna, sua alma se comunicaria ao seu corpo e você seria admitida na felicidade dos homens.
A sereiazinha suspirou tristemente, olhando para a sua cauda de peixe.
Eis que passa, aquele que eu amo de todo o meu coração, aquele que ocupa todos os meus pensamentos e a quem eu desejaria confiar minha vida! Arriscaria tudo por ele e para ganhar uma alma imortal. Enquanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai, eu vou procurar a feiticeira do mar, que eu tanto temi até agora. Talvez ela possa me dar conselhos e ajudar- me.
E a sereiazinha, saindo de seu jardim, dirigiu-se para as rochas escuras onde vivia a feiticeira. Jamais ela seguira por esse caminho. Não havia nem uma flor nem uma árvore. No fundo, a areia cinzenta e lisa, formava um redemoinho.
A princesa viu-se obrigada a atravessar esse terrível turbilhão para chegar aos domínios da feiticeira, onde sua casa se elevava no meio da mais estranha floresta. Todas as árvores e as rochas não eram mais do que polidos, metade animal metade planta, parecidos com as serpentes que saem da terra.
A sereiazinha, tomada de pavor, teve vontade de retroceder; todavia, ao pensar no príncipe e na sua alma imortal, armou-se de toda a sua coragem. Prendeu seu cabelo em torno da cabeça, para que os polípos não a pudessem agarrar, cruzou os braços no peito e nadou assim, entre aquelas horríveis criaturas.
Chegou finalmente a um grande lugar no meio daquela floresta, onde enormes serpentes do mar mostravam seus ventres amarelos. No meio do local estava a casa da feiticeira, construída com ossos de náufragos, e onde a feiticeira, sentada numa grande pedra, dava de comer a um grande sapo, assim como os homens dão migalhas aos passarinhos. 
Sei o que você deseja, falou ela ao ver a princezinha; seus desejos são idiotas; de qualquer forma, eu os satisfarei, mesmo sabendo que eles só lhe trarão infelicidade.
Afinal, você fez bem em vir; amanhã, ao nascer do sol, vou preparar-lhe um elixir que você levará para terra. Sente-se na costa e beba-o. Logo a sua cauda se dividirá, transformando naquilo que os homens chamam de duas belas pernas. Mas eu lhe aviso que isso lhe fará sofrer como se lhe cortassem com uma espada afiada. Todo mundo admirará a sua beleza, você conservará sua marcha ligeira e graciosa, mas cada um de seus passos doerá tanto, como se você caminhasse sobre espinhos, fazendo o sangue correr. Se estiver disposta a sofrer tanto, eu poderei ajudá- la.
Suportarei tudo!, disse a sereia com voz trêmula.
Mas não se esqueça de que, continuou a feiticeira, uma vez transformada em ser humano, você não poder á voltar a ser uma sereia! Você nunca mais verá o castelo de seu pai; e se o príncipe, esquecendo-se de seu pai e de sua mãe, não se apegar a você de todo o coração e não se unir a você em casamento, você jamais terá uma alma imortal. No dia em que ele se casar com uma outra mulher, seu coração se quebrará e você não será mais do que uma espuma no alto das vagas.
- Concordo - disse a princesa, pálida como uma morta.
- Nesse caso - prosseguiu a feiticeira é preciso que você me pague; e eu não lhe peço pouca coisa. Sua voz é a mais linda do os sons do mar, você pensa com ela encantar o príncipe, mas é justamente a sua voz que eu exijo como pagamento. Desejo o que você tem de mais precioso, em troca do meu elixir; porque, para torná-lo bem eficaz, eu tenho que jogar dentro dele o meu próprio sangue.
- Mas se você tomar a minha voz, - perguntou a sereiazinha - que me restará?
- Sua figura encantadora - respondeu a feiticeira, seu caminhar leve e gracioso e seus olhos expressivos, isso é mais do que suficiente para enfeitiçar qualquer homem. Vamos! Coragem! Estire a língua para que eu a corte, depois lhe darei o elixir.
- Seja - respondeu a princesa e a feiticeira cortou-lhe a língua. A pobre menina ficou muda. A seguir, a feiticeira colocou seu caldeirão no fogo para fazer ferver o seu magico elixir.
Aqui está, disse a feiticeira, depois de ter derramado o elixir num frasco. 
Quando chegou ao castelo de seu pai, as luzes da grande sala de danças estavam apagadas; todo mundo dormia, mas ela não ousou entrar.
Não podia falar com eles e logo iria deixá-los para sempre- Parecia que seu coração se partia de dor. A seguir foi até seu jardim, colheu uma flor de cada um dos de suas irmãs, enviou uma porção de beijos ao castelo e subiu à superfície do mar, afastando-se para sempre.
0 sol ainda não estava alto, quando ela chegou ao castelo do príncipe. Sentou-se na praia e bebeu o elixir; foi como se uma espada afiada penetrasse em seu corpo; ela de desmaiou e ficou estendida na areia como morta.
0 sol já estava alto quando ela acordou sentindo uma dor cruciante. Mas à sua frente estava o príncipe en costado a um rochedo, lançando sobre ela um olhar cheio de admiração. A sereiazinha baixou os olhos e então viu que a sua cauda de peixe desaparecera, dando lugar a duas pernas brancas e graciosas.
0 príncipe perguntou-lhe quem era ela e de onde vinha; ela fitou-o com um olhar doce e aflito, sem poder dizer uma só palavra. Depois o jovem a tomou pela mão e levou-a para o castelo. Assim como dissera a feiticeira, a cada passo que ela dava, sentia dores atrozes; entretanto, subiu a escadaria de mármore pelo braço do príncipe, leve como uma bola de sabão e todos admiraram o seu andar gracioso. Vestiram-na de seda, sem deixarem de admirara sua beleza; mas ela continuava muda. Escravas vestidas de ouro e prata cantavam para o príncipe; ele aplaudia e sorria para a jovem.
Se ele soubesse, pensava ela, que por ele eu sacrifiquei uma voz mais linda ainda!?
Depois de cantarem, as escravas dançaram. Mas assim que a pequena sereia começou a dançar nas pontas dos pés, quase sem tocar o solo, todos ficaram extasiados. Nunca haviam visto uma dança mais linda e harmoniosa. 0 príncipe pediu-lhe que não o deixasse mais e permitiu-lhe que dormisse à sua porta, numa almofada de veludo. Todos ignoravam o seu sofrimento ao dançar.
No dia seguinte o príncipe lhe deu um traje de amazona para que ela o seguisse a cavalo. Depois de terem saído da cidade aclamados pelos súditos do príncipe, eles atravessaram prados cheios de flores, florestas perfumadas e alcançaram altas montanhas; e a princesa, rindo-se, sentia seus pés arderem.
A noite, enquanto os outros dormiam, ela descia secretamente a escadaria de mármore e ia até a praia, a fim de refrescar os pés doridos na água fria do mar e a lembrança de sua pátria vinha ao seu espírito.
Cada dia que se passava o príncipe mais a amava, como se ama uma criança bondosa e gentil, sem ter a idéia de transformá-la em sua esposa. No entanto, para que ela tivesse uma alma imortal, era preciso que ele se casasse com ela.
Não me ama mais do que a todas as outras? eis o que pareciam dizer os olhos tristes da pequena muda, quando o tomava nos braços e depositava um beijo na sua fronte.
- E claro que sim - respondia o príncipe - pois você possui o melhor coração de todas; você é mais devo tada e se parece com a jovem que eu encontrei um dia, mas que talvez não veja nunca mais. Quando eu estava num navio, sofri um naufrágio e fui depositado em terra pelas ondas, perto de um convento habitado por muitas jovens. A mais moça delas encontrou-me na praia e me salvou a vida, mas eu a vi somente duas vezes. jamais neste mundo, eu poderia amar outra que não a ela; pois bem! Você se parece com ela, muitas vezes chega mesmo a substituir a imagem dela em meu coração.
- Ai de mim!, pensou a sereiazinha, ele ignora ter sido eu a salvá-lo, e a colocá-lo perto do convento. Ama uma outra! No entanto, essa jovem está encerrada num convento e jamais sai; talvez ele a esqueça por mim, por mim que o amarei sempre e lhe devotarei toda a minha vida.
0 príncipe vai-se casar com a linda filha do rei vizinho, disseram um dia; está equipando um soberbo navio sob o pretexto de visitar o rei, mas a verdade é que ele vai-se casar com a filha.
Isso fez a princesa sorrir, pois ela sabia melhor do que ninguém quais os pensamentos do príncipe. Ele lhe dissera: já que meus pais exigem, irei conhecer a princesa, mas jamais eles farão com que eu a tome em minha esposa. Não posso arriá-la; ela não se parece, como você, com a jovem do convento e eu preferiria casar com você, pobre menina abandonada, de olhos tão expressivos, malgrado o seu eterno silêncio. E, depois de falar dessa maneira, ele depositou um beijo em seus longos cabelos.
Espero que você não tenha medo do mar, disse-lhe ele no navio que os levava.
No dia seguinte o navio entrou no porto da cidade em que morava o rei vizinho. Todos os sinos repicaram, a música enchia a cidade e os soldados, no alto das torres, balançavam as suas bandeiras. Todos os dias havia festas, bailes e noitadas; mas a princesa ainda não chegara do convento, onde recebera uma brilhan te educação.
A sereiazinha estava muito curiosa para ver a sua beleza: e, finalmente, teve essa satisfação. Teve de reconhecer jamais ter visto uma tão linda figura, uma pele tão branca e olhos negros tão sedutores.
É você!, gritou o príncipe ao vê-la, foi você que me salvou quando eu estava na praia?. E apertou entre os braços a sua noiva toda corada. É muita felicidade!, continuou ele, voltando-se para a sereiazinha. Meus desejos mais ardentes se realizaram! Você compartilhará de minha felicidade, pois ama-me mais do que qualquer pessoa.
A jovem do mar beijou a mão do príncipe, embora tivesse o coração ferido. No dia do casamento daquele que ela amava, a sereiazinha devia morrer e transformar-se em espuma.
A alegria reinava por todos os lados; os arautos anunciavam o noivado em todas as ruas e ao som de suas cornetas. Na grande igreja, um óleo perfumado brilhava nas lâmpadas de prata e os padres agitavam os incensários; os dois noivos deram-se as mãos e receberam a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, a sereiazinha assistiu à cerimônia; mas ela só pensava na sua morte próxima e em tudo o que perdera neste mundo.
Ao aproximar-se a noite, acenderam lanternas de vá rias cores e os marujos começaram a dançar alegremente no convés. A sereiazinha lembrou-se da noite em que ela os vira dançar pela primeira vez. E come çou a dançar também, leve como uma borboleta e foi admirada como um ser sobre-humano. Já que ela não possu ía uma alma imortal. justamente até a meia-noite a alegria reinou em torno dela; ela própria ria e dan çava, com a morte no coração.
Finalmente, o príncipe e a princesa retiraram-se para a sua tenda armada no convés: ficou tudo silencioso e o piloto quedou-se sozinho em frente ao leme. A sereiazinha, apoiando seus braços brancos na amurada do navio, olhava para o oriente, do lado do nascer do sol; sabia que o primeiro raio de sol a mataria.
De repente, suas irmãs saíram do mar, tão pálidas quanto ela mesma; elas nadaram em volta do barco e chamaram por sua irmã que ficara muito triste: os longos cabelos de suas irmãs não flutuava mais ao vento, elas o haviam cortado.
Nós os entregamos à feiticeira, disseram elas, para que ela venha em seu auxílio e a salve da morte. Em troca ela nos deu um punhal bem afiado, que aqui está. Antes do nascer do sol, é preciso que você o enterre no coração do príncipe e, assim que o sangue ainda quente cair aos seus pés, eles se unirão e se transformarão numa cauda de peixe. Você voltará a ser uma sereia; poderá descer para a água junto de nós e somente daqui a trezentos anos é que se transformara em espuma.
A seguir, com um longo suspiro, elas mergulharam novamente, a fim de irem encontrar-se com a velha avó que esperava ansiosa pela sua volta.
A sereiazinha levantou a cortina da tenda e viu a jovem esposa adormecida, com a cabeça apoiada no peito do príncipe. Aproximou-se dos dois e depositou um beijo na fronte daquele que tanto amara. A seguir, voltou seu olhar para a aurora que se aproximava, para o punhal que levava nas mãos e para o príncipe que pronunciava em sonhos o nome de sua esposa, levantou a mão que empunhava o punhal e ... lançouo no meio das vagas. 
No lugar onde ele caíra, pareceu- lhe ver várias gotas de sangue rubro. A sereiazinha lançou mais um olhar para o príncipe e precipitou-se no mar, onde sentiu seu corpo dissolver-se em espuma. Nesse instante o sol saiu das vagas; seus raios benéficos caíram sobre a espuma fria e a sereiazinha não sentiu mais a morte; ela viu o sol brilhante, as nuvens de púrpura e em sua volta flutuarem milhares de criaturas celestes e transparentes. Suas vozes formavam uma melodia encantadora, mas tão sutil, que nenhum ouvido humano poderia ouvir, assim como nenhum olhar humano poderia ver as criaturas. A jovem do mar apercebeu-se de que possuía um corpo igual ao delas e que, pouco a pouco, ela se elevava sobre a espuma.
Onde estou?, perguntou ela com uma voz da qual música alguma pode dar uma idéia.
Junto com as filha do ar, responderam as outras. A sereia não possui uma alma imortal e só pode conseguir uma, através do amor de um homem; sua vida eterna depende de um poder estranho. Assim como as sereias, as filhas do ar não possuem uma alma imortal, mas podem ganhar uma, por meio de boas ações.
Nós voamos para os países quentes, onde o ar pestilento mata os homens, para levar-lhes o frescor; espalhamos pelos ares o perfume das flores por toda a parte por onde passamos, levamos o socorro e damos saúde. Depois que praticamos o bem durante trezentos anos, adquirimos uma alma imortal a fim de participar da felicidade eterna dos homens.
Pobre sereiazinha, você esforçou-se da mesma forma que nós; como nós você sofreu e, saindo vitoriosa de suas provações, elevou-se até o mundo dos espíritos do ar e agora depende de você ganhar ou não uma alma imortal, por meio de suas boas ações.
E a sereiazinha, levantando os braços para o céu, derramou lágrimas pela primeira vez. Os gritos de alegria foram ouvidos novamente sobre o navio; mas ela viu o príncipe e sua bela esposa olharem fixamente e melancolicamente para as espumas brilhantes, como se soubessem que ela se precipitara nas ondas. Invisível ela abraçou a esposa do príncipe, lançou um sorriso aos recém-casados, depois subiu com as outras filhas do ar para uma nuvem cor-de-rosa, que se elevou no céu.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"HAPPINESS ONLY REAL WHEN SHARED"

Estávamos caminhando pela rua, eu e ela. Dia lindo e luminoso de setembro. Ela, mal tocando os pés no chão, me pergunta:
-"Mãe, porque que quanto a gente está feliz o coração parece que quer sair fora da gente e encontrar outro coração? E dá vontade de correr?"
Eu disse a ela:
- "Porque a felicidade não cabe só em nós".
E a peguei pela mão e saímos correndo, nós duas.

É isso, a felicidade. Um encontro de corações.




(O título desse post é uma frase do filme Into the Wild. Em português, Na Natureza Selvagem. Recomendo.)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

VÓRTICE

Chegou assim, como o mar. Eu, que sempre naveguei pela vida, me deixei levar, plena de encanto. Queria ir além, o horizonte sem fim da viagem que não se acaba. Porém, naufraguei. Perdi-me no escuro e fundo que há em mim. 
Estou de volta à praia. Marés houve que me permitiram flutuar na esperança de um recomeço doce. Sinto o sal que deixa suas marcar ao secar, e aquele tantinho de amargor. A vazante é calma e meus olhos ainda úmidos anseiam pelo reflexo de outras luas.
Partiu assim, como o mar. Fiquei aqui, oceano.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

ENQUANTO O TEMPO PASSA



(Estou em uma fase introspectiva, ao mesmo tempo, de muito trabalho. Amadurecendo algumas coisas, cultivando outras. Esperando o tempo da colheita. Para não abandonar o blog, reedito um texto de 2008, um dos que mais gosto, pelo significado que tem para mim).



... doce nome de filha

Eu já disse em outro post que minha infância tem a luz da casa dos meus avós paternos.
Minha menina de cachos tem o mesmo da minha avó materna. Elas nunca se encontraram... Mas eu conto para minha menina histórias da bisavó.
Minha avó era muito doce. Eu era uma criança muito quieta e ela sempre me entendeu. Gostava de ficar em cima da cama no quarto dela enquanto era arrumado e ver a poeira dançando nos raios de sol. Estou nesta cama na minha foto preferida.
Ela me contava sobre sua infância e juventude, histórias que me encantavam. Filha mais nova de uma família bastante tradicional na cidade, suas roupas eram feitas por uma modista copiando figurinos que vinham de Paris (eu ainda tenho uma revista com estes figurinos). A casa dos meus avós era cheia de pequenos tesouros escondidos em armários e gavetas, xícaras chinesas delicadas como asas de borboletas, vidros de perfumes que cheiravam como um jardim inteiro, broches e enfeites vindos de lugares exóticos...
Minha avó era capaz de pequenos gestos cheios de significado. Cada neta tinha uma xícara especial para tomar café com leite e para cada uma ela fazia um bolo especial (meu irmão veio bem depois). Cozinhava divinamente. Também era muito bem humorada, gostava de contar piadas, adorava festas e estava sempre lendo, romances históricos que eu adorava ir comprar com ela no Mercado. Era muito sincera, para desgosto do meu avô, e histórias a respeito desta sinceridade fazem parte das lendas familiares.
Esta minha avó serena, que todos amavam, não teve uma vida fácil, no entanto. Perdeu dois filhos, um ainda criança, de sarampo. E outro, meu tio mais bonito e inteligente, morreu muito jovem em uma tragédia. Imagino que para ela e para meu avô a vida não tinha tantas cores quanto as que eles nos davam.
Ela tocou a vida de muita gente com sua delicadeza. Espero que minha menina seja, como ela, uma verdadeira dama.
(Minha outra avó tem nome de flor, mas é na verdade uma velha e bela árvore. Em sua sombra se abriga uma grande família, unida pela sua presença).



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